domingo, 7 de agosto de 2016

“A defesa do aborto, e o que isso tem a ver com a Liturgia” ou “A defesa do aborto e o desprezo da Eucaristia: dois males, um fundamento”




I

O que se diz para defender o ser comum abortar costuma fugir da essência da questão. A questão é “Uma mulher está grávida. Por que não deveria abortar?”, sua essência é “O que é aquilo que se mata ao abortar? O que é aquilo que cresce no útero da grávida?”

Digo que foge da essência porque o que se contrapõe ao não dever poder abortar é a expressão, com variações, “A mulher deve ter direito ao próprio corpo”. Essa frase é um jargão, um princípio, e como tal, uma afirmação que não traz em si os modos de sua aplicação, mas apenas guia em termos gerais o significado das ações ou, na pior das hipóteses, serve como um anestésico para a consciência que acusa a feitura de um grande mal.

A fuga da essência do carregar em sua barriga um filho se dá porque, primeiro, ninguém tem em sentido absoluto poder sobre o próprio corpo. Tenho poder de ir e vir, andar pelas praças e ruas, mas esse poder cessa quando o local é o interior da casa que não seja a minha. Aí meu poder de império sobre meu corpo acaba, afinal não posso, por mais que queira, entrar na casa de alguém sem permissão desse alguém. A expressão “A mulher deve ter direito ao próprio corpo” é usada para dar sentido absoluto ao império da própria vontade. Como tal, está fora da realidade, pois impedido por leis naturais, jurídicas e morais.

É também fuga da essência quando se tenta dar sentido à expressão mostrando alguma aplicabilidade, isto é, retirando-a da abstração completa para um pouco da realidade. Pode-se dizer que uma expressão desse poder sobre o próprio corpo é a decisão de abortar porque um filho em dado tempo seria o fim de uma carreira ascendente, ou o início de uma vida com muitas dificuldades ou a entrada em uma incapacidade de lidar com as responsabilidades de ter um filho.

Essas suposições são acidentais ao estar grávida porque não são inerentes à gravidez. Gravidez não traz em si o necessário fim de uma carreira, sendo aplicável apenas a algumas mulheres. Também o mesmo para a diferença entre a grandeza da responsabilidade que chega e a que alguém é capaz de assumir. Algumas pessoas não são capazes de criar bem um só filho, outras são capazes de criar bem vários. Por ser algo que ora se verifica e ora não se verifica, não pode ser essencial à gravidez, mas apenas acidental.

Tudo até aqui dito é óbvio, mas estes são tempos em que o óbvio precisa ser defendido, tamanho o ataque que tem sofrido.

Dada superficialidade própria dos jargões, vez ou outra a tentativa de defesa do aborto aborda a questão essencial: “O que é aquilo que cresce no útero da grávida? Que é aquilo que se mata ao abortar?”

Aqui cabe um parêntese: é questão essencial porque diante da essência tudo mais se esvanece e não pode ser tomado por determinante para escolha de como agir e viver. A essência determina o como ser, os acidentes apenas mostram como adaptar-se sem ferir a essência.

Parêntese feito, volto: na tentativa de justificar o aborto, alguns enveredam pelo caminho essencial. A conclusão é sempre a mesma, ainda que por vezes venha embalada em termos técnicos da biologia: “aquilo que cresce no útero da grávida não é humano ainda, pois não pensa, não corre, não ama”.

Essa forma de pensar tem um fundamento: é humano aquele que tem as capacidades de um humano médio.



II



O desprezo da Eucaristia é visto de dois modos: o modo dos que não se importam e o modo dos que se importam. Os primeiros simplesmente ignoram que a Eucaristia seja Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor. Como não há nenhum elemento sensível ordinariamente – pois extraordinariamente a Eucaristia se torna sangue e carne, uma espécie de milagre Eucarístico – afinal nada há Nela que aos sentidos diga da Essência Dela, se não houver quem informe, quem catequise, não se poderá saber o que realmente é a Eucaristia, sendo de esperar que quem vendo um pedaço de pão trate como se pedaço de pão fosse.

Há o desprezo mais triste, o dos que se importam. Nesses está o conhecimento do que é a Eucaristia, mas parece apenas uma sentença a mais na mente, “A Eucaristia é Deus”, e só. Há várias verdades que em forma de sentença podem ser levadas por toda a vida sem que adquiram uma essência de verdade, pois uma verdade essencial obriga a guiar-se por ela, não sendo possível ser a ela indiferente, restando, sem querer colocar a vida nos trilhos por essa verdade construídos, negá-la para se livrar da tensão que gera o saber e não viver segundo o sabido.

Para os que se importam há uma heresia prática. Explico com um exemplo: há o ateísmo prático, que é aquele em que não se nega Deus, mas vive-se como se Ele não existisse, cria-se um deus próprio que caiba na mente e permite o que seu criador quer fazer e proíbe o que seu criador não quer fazer, além de não pedir contas do que foi a ele, mesmo assim, contrário.

A heresia prática é a da presença circunstancial. Cristo está em Corpo, Sangue, Alma e Divindade na Eucaristia, mas só na Missa, ou só como uma sentença na mente, ou só como algo meramente elevado. Passada a circunstância que torna a presença minimamente sensível, passa também a consciência da presença.

Essa forma de agir caracteriza-se pela irreverência não intencionada: bate-papo diante do Sacrário, palestra de leigo com a Eucaristia presente, uso da capela como mero salão de encontro, mesmo que com fins pios, quando não há Missa.

Essa forma de agir tem um fundamento: a ausência de sinal sensível que a todo tempo lembre que ali está Deus e devemos nos comportar e ser com coerência com essa verdade.



Conclusão

Os dois fundamentos fundamentos não são, pois se apóiam sobre algo ainda, algo comum aos dois. Tanto a crença de que é humano o que tem as características apreciáveis do humano, quanto a prática de esquecer o que algo é quando esse algo não se mostra a todo momento fundam-se no que é quase um mantra de nossos tempos, mas mantra oculto sussurrado em cada universidade, em cada avaliação, em cada juízo crítico – seja lá o que isso for, afinal todos dizem possuí-lo e cada um diz coisa que aos antigos fariam corar – e se esconde sustentando a maioria de nossas idéias.

Esse fundamento é a visão comum de que o que algo é é a soma de suas características.

Quando julgo conhecer algo pela enumeração das características desse algo, facilmente me convenço de que conheci o algo estudado. É um erro, erro grave, pois as características de algo são seus acidentes e não podem dizer com firmeza o que algo é, mas apenas o que lhe é possível manifestar.

Perdida a noção de essência, que deve ter trazido estranhamento nesse texto, sobra só o listar características e listar o como elas se relacionam. O homem deixou de ser o ente inapreensível na totalidade e insubstituível cada um para tornar-se o ente que pode andar, correr, falar, querer. Daí para justificar o aborto é imediato: feto não anda, não corre, não se expressa, logo, feto não é humano.

Da mesma maneira o desprezo da Eucaristia vem [também] da supervalorização do sensível. Se parece pão, tem gosto de pão, cheiro de pão, então é pão. Ou não é, mas parece demais e me esqueço de que não é, não sinto que não seja, ajo segundo o não sendo.

A perda da percepção de que qualquer coisa está bem para além daquilo que a coisa manifesta em suas características torna possível afirmar que quem é gente, mas não age como gente, não deve ser gente então. Torna comum agir seguindo o impulso direto do sensível. Faltando o sensível, falta o que determina o agir.

As ciências naturais utilizam exatamente esse fundamento: o que algo é é o que pode ser medido e modelado matematicamente. Diz-se que a ciência não diz o Por Que, mas ainda está incompleto, pois a ciência não diz nem o O Que. Que é um elétron? Um ente com tais e tais simetrias que comporta-se dessa e dessa forma em tais e tais circunstâncias. Mas, O Que é um elétron? Só pode ser explicado em termos de suas características sensíveis e em como essas características se relacionam. Há o Como, o Quando, o Onde, mas o O Que e o Por Que estão além e não são objeto das ciências naturais.

Uma mente que pretenda ser científica hoje é exatamente a mente que a tudo reduz ao conjunto das características sensíveis.

Mas, se em essência, e não em acidentes – que são as características sensíveis – um punhado de células é uma pessoa e Aquilo que parece pão é Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor, como mostrar isso aos outros? Antes, como ver isso?

Duas respostas: a primeira, a Graça. Afinal é razoável que Deus possa dar a conhecer o que ele mesmo criou. Mas há também a parte que nos cabe fazer: como mostrar a essência de algo? Pela forma como o algo é tratado.

Se trato a Eucaristia como o que Ela é, aproximo-me do conhecimento do que Ela é e mostro aos outros o que Ela é. Se trato o feto como o que ele é, mais perto do que ele é ficarei.

É aqui que o fundamento da defesa do aborto, o esquecer que tudo possui uma essência e não apenas características manifestas, que é também o fundamento do desprezo da Eucaristia, se liga com a Liturgia. Se Nosso Senhor Eucarístico é tratado como Nosso Senhor, veremos ali Nosso Senhor. Mas que é o tratamento? É a Liturgia, o serviço do culto. É bem mais profundo o sentido aparente da frase de Bento XVI “A melhor catequese é uma Liturgia bem celebrada”: É pela Liturgia que se mostra aos outros o que a Eucaristia é, que se mostra que Ela é Deus, é a forma de dar a conhecer o Mistério da Encarnação, Morte e Ressurreição.

Portando-se diante de Deus como estando diante de Deus, é possível ver que é Deus, é possível mostrar que além dos acidentes de pão, além das características manifestas de pão, há uma essência e essa essência é o Próprio Deus. Tratando-O como coisa comum, não se pode dar a conhecer ao outro que não é coisa comum. Mostrando em cada gesto, cada palavra, cada mover-se que aquela aparência de Pão é em essência Cristo Sacrificado e Ressuscitado, mostra-se que É Cristo Sacrificado e Ressuscitado.

A perda da verdade de que as coisas são bem mais que suas características manifestas tem fundado as justificativas e a indiferença para o assassinato de bebês e tem fundado o desprezo pelo que a Igreja prescreve e por suas verdades de Fé.


quinta-feira, 26 de maio de 2016

Se cultura é a expressão do modo de ser de um povo, então não é possível ser católico e ser brasileiro. Cada um desses dois modos de ser exclui o outro. Se a cultura é o que eleva um povo ao que o transcende, então só pela Igreja o Brasil escapará da dissolução.